Acorrentado a seus próprios traumas, o agente federal Teddy Daniels é designado a investigar o desaparecimento de uma interna do manicômio penitenciário na ilha de Shutter, litoral de Boston. No decorrer da trama, percorremos com ele os assustadores meandros da loucura e desvendamos uma bela e trágica história de amor.
Uma vasta biblioteca de imagens arquetípicas indica que o tema do filme não é policialesco e sim psiquiátrico. A começar pela ilha, um rochedo isolado da sociedade por um mar revolto, acometida de violentas intempéries. Simboliza a mente do louco, enrijecida e isolada por um mar de pensamentos confusos e turbulentos, seus surtos psicóticos e a própria psicanálise, único e frágil acesso ao interior dessa mente, exatamente como a periclitante balsa que leva e traz seus visitantes.
Assim também, as diversas alas do manicômio e os “lugares” da ilha - como a mata e o penhasco com suas cavernas - são organizados como a mente freudiana, com superego, consciente, inconsciente e subconsciente. Ilha do Medo é, na verdade, uma jornada de Ego (o protagonista Daniels) por entre a estrutura da mente freudiana, vivendo literalmente o confronto de Eros (amor) e Tanatos (morte), força motriz de todas as emoções.
Apesar da idade, Leonardo Di Caprio parece meio que uma criança interpretando um personagem adulto e o filme é uma colagem de referências cinematográficas, desde a trama até o visual, decepcionantemente vulgares e lugar-comum para o habitual realismo crú de Scorcese. De filmes de terror e o expressionismo alemão ao cine noir, sempre com cenas pré-fabricadas como querendo te amedrontar. Uma série de "defeitos" que tornam o filme mecânico e parecem banalizar a produção. Mas tudo isso se explica, e faz muito sentido, à medida que compreendemos como se construiu aquele enredo.
Muito tristemente, o auge do filme é estuprado por um longo surto de explicacionite aguda, o mal típico de toda produção norte-americana, com mais de uma dezena de planos nitidamente inseridos após a edição do filme. São aquelas em que os coadjuvantes são convocados a posteriori para gravar falas que tentam esclarecer o que está acontecendo, tudo por exigência dos produtores e muito a contragosto do diretor e roteirista, que desejam preservar a integridade poética da obra. O caráter didático quebra, miseravelmente, o sentido catártico da cena.
Assim, por falta de sutileza psicológica, Ilha do Medo perde a chance de se colocar entre as grandes histórias do amor trágico, que tem na sua galeria clássicos como Romeu e Julieta, Lolita e o pós moderno Asas do Desejo. Poderia ser o Romeu e Julieta dos tempos modernos, que se passa no purgatório das almas perdidas, sob a ótica da violência, o tema primal de toda a obra cinematográfica de Scorcese. Que ótimo seria talvez ver este filme realizado por Stanley Kubrick, que dedicou sua vida a filmar a loucura em todos os seus tempos e sentidos.
Mas a cena final, com a decisão de Daniels, e que culmina no plano do farol apagado ao pôr-do-sol, com toda sua carga simbólica, é ótima e recupera sozinha toda desgraça anterior. Assista, traga o quebra-cabeças para casa e monte você mesmo a versão "director’s cut". Mas cuidado: o filme é tenso demais e te larga na rua mais pesado que um rochedo isolado da sociedade por um mar revolto. Você sai do cinema desejando a companhia de outras pessoas, mesmo não conseguindo articular conversa alguma.
* por Nelson Doy Jr., que é publicitário, mora no Rio, mas volta e meia curte o Lado B de Salvador, quase sempre ciceroneado por essa blogueira que vos fala. Além de ser brilhante nos seus textos (e me presentear com obras suas exclusivas), sempre salva-me nas horas mais difíceis de blogueira.
fotos: www.imdb.com
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