Crédito desta foto: eu mesma inspiradíssima...

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14 de nov. de 2010

Rebobinando: Tecno Céu - Nosso Lar*



Nosso Lar (Wagner de Assis – 2010) revampiriza o conceito do Céu cristão para os tempos materialistas e tecnológicos em que vivemos, tornando-o muito mais marqueteável.

O filme é baseado na obra homônima de Chico Xavier, ditada pelo próprio personagem principal, o espírito André Luiz, explicando os princípios do Espiritismo kardecista e o funcionamento da colônia Nosso Lar, um entreposto espiritual anterior aos níveis mais elevados.

A história conta a trajetória de André Luiz desde o momento em que desperta desencarnado no Umbral, uma espécie de purgatório, até sua chegada e transformação espiritual na tal colônia, intercalado por flashbacks que reconstroem sua trajetória de vida desde a infância até o momento da morte física.




O conceito celestial é simples. A vida após a morte é exatamente a mesma que aqui na Terra dos encarnados, com todos os sofrimentos físicos e injustiças sociais, só que a moeda agora é outra: méritos espirituais.

Num paralelo com o Rio de Janeiro (a colônia Nosso Lar estaria situada próxima à cidade, apenas em outra dimensão energética), quem pisou na bola vai morar numa favela chamada Umbral, e quem está bem na foto vai morar num condomínio fechado na Barra. A vida na Barra é bem melhor. Lá é arborizado, ensolarado e não precisa nem sair: toda a infra-estrutura já está lá dentro, tem até Aerobus. Tudo é limpo e só tem gente de bem, convivendo num grau de civilidade plácida quase sinistra para nossos padrões.

Já em Umbral o clima é péssimo, sombrio e não oferece mínimas condições sanitárias. Quem já era ruim aqui, lá vai de mal a pior. Figurantes do videoclipe Thriller, que em trinta anos parecem ter melhorado muito pouco, brigam pelo direito de beber uma lama onde nem caranguejo viceja. O objetivo é se arrepender do fundo da alma e ser resgatado dessa lama.



Nosso Lar constroi a partir daí as bases para se tornar o novo clássico do conformismo social. Ao pobre encarnado, oferece a chance de pular direto para a classe alta após a morte. Além disso, cria a espetacular figura do determinismo livre-arbitrário: foi você mesmo quem programou sua trajetória de vida, em modernos iPads celestiais, antes de encarnar para viver o seu roteiro. Para a classe média, o alento é que Lá é quase tão ruim quanto aqui. De mérito em mérito, um trabalhador dedicado leva dezoito anos para comprar uma casa própria. O serviço público também não é lá essas coisas. Apesar de amáveis e atenciosos, tudo leva uma eternidade. A frase “no dia em que for atendido eu já reencarnei” acontece de fato.



De resto, não faz mal. Ensina que abusos cometidos contra o corpo, como beber e comer mal e demais (cigarro implícito) podem caracterizar morte por suicídio inconsciente, o que é garantia de ir direto para o final da fila. Ensina a abandonar o orgulho, a inveja e a preguiça. Ensina que a Terra é o melhor dos planetas para encarnar (consciência ecológica). Ensina a respeitar crianças, idosos e a família porque é provável que em alguma próxima encarnação, seu pai retorne como seu filho adolescente! Ensina a orar pelos falecidos, porque eles recebem as orações num Facebook; super chato eles abrirem e você não estar lá. Aos marxistas, acena com um bem sucedido tecnoparaíso igualitário, baseado em trabalho comunitário. E, acima de tudo, ensina que ser cético não está com nada...



A oportunidade do ano para assistir um filme com sua avó. Sem arrependimento. E vale prestigiar essa iniciativa do cinema nacional de encontrar seu caminho para os blockbusters comerciais, bons de bilheteria. Enquanto os norteamericanos investem em violência, o cinema brasileiro investe em comédias e espiritismo. É outro astral.

Imagens: www.adorocinema.com.br


*Texto de Nelson Doy Jr., publicitário, mora no Rio, mas curte o Lado B de Salvador quando aparece por aqui. Eu e o Nelson nunca debatemos o tema, mas nossas visões sobre espiritualidade são um tanto diferentes (pelo que ele expôs aqui), o que não impede que ele escreva para esse blog e que eu poste seu texto com muito prazer e muita honra. E viva a diversidade!

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