Meu amigo e crítico oficial desse blog, Nelson Doy, mandou-me esse texto abaixo para publicar. Farei isso com certeza. Mas tenho que confessar que achei ainda mais fascinante que o texto o comentário que ele escreveu na lista do nosso grupo após enviá-lo: "Só acrescentando, acho que O Som ao Redor é uma grande experiência a ser vivida, vivenciada, o legal é passar por essa experiência; é um filme muito sensorial e mental: esse é o barato dele. O barato não é falar dele, mas experienciá-lo. E se não assistir no cinema, tem que assistir em casa com um som bom, que preencha o ambiente. É isso. Vivam essa experiência. Passem por esse filme."
Se vocês já estão seduzidos como eu, então corram para o cinema (uma obra assim, é bem melhor na telona, não é?), pois a película já está saindo de cartaz, mas vi que a Sala de Arte vai reexibir. Entendeu o porquê do URGENTE no título? rsrsr... Então esse texto poderia estar na seção Cinematrografando ou Rebobinando. Tudo depende da sua velocidade em comprar o ingresso do cine ou ter que ir a uma locadora (rezando para que a distribuição seja boa e chegue à uma loja perto de você, claro!) Confiram (enfim!), o texto de Nelsão, cujo primeiro título eu amei também "Aqueles e Aquilos que se nos Impõem os Seus Limites" (mas que ele resolveu mudar... Fazer o quê? rsrsr...)
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Um Peckinpah Malemolente
Já quase saindo de cartaz, fui conferir essa nova sensação do cinema nacional que é O Som ao Redor. Simples e extraordinário como um pequeno e bem resolvido tratado sociológico brasileiro e no uso da linguagem cinematográfica, é mais um fruto da geração pernambucana que já produziu, entre outros, Amarelo Manga, de Claudio Assis.
O filme retrata o cotidiano de um condomínio classe média em alguma rua, em algum bairro, que poderia ser em qualquer capital brasileira, Rio, São Paulo, BH, Salvador, Porto, você nomeia, mas que afinal ocorre, muito apropriadamente, no Recife, como se verá. Tudo começa a mudar com a chegada de seguranças que se oferecem para prestar serviço de vigilância na rua.
Nada se pode falar de O Som ao Redor sem estragar o prazer de desmontar e remontar esse pequeno quebra-cabeças, mas às vezes uma análise ajuda a curtir melhor. Você decide se continua a ler. O mais importante a dizer é que, sendo uma construção sensorial e psicológica, é fundamental passar pela experiência de assisti-lo. Se não no cinema, talvez até melhor em casa (tem tudo a ver assistir na sala ou até no quarto), mas então em home-theater com um som que preencha todo o ambiente. A sonoplastia é um ator importante no filme.
O Som ao Redor é um declarado filme de terror que de tão leve e agradável, doce, muitos quase não se dão conta disso. Em uma época em que se usa misturar gêneros, vai bem esse, misturado com um cinema tipo “MPB”, desses mesmos que retratam o cotidiano de um condomínio classe média. Não é por acaso que comece com uma reprodução marcante de O Iluminado, a cena da menina no velocípede, percorrendo os corredores do hotel mal assombrado.
O fantasma no caso, não é a violência urbana, mas a sensação dela, a possibilidade dela, que paira no ar ao redor como se o risco da invasão estivesse o tempo todo presente na vida do brasileiro. O filme todo aparenta uma naturalidade fluida e despretensiosa, mas não se engane. O roteiro é ardilosamente arquitetado e irá trabalhar essa sensação iminente ao longo de toda sua estrutura. O tempo todo ocorrem cenas ou fatos que terminam em decepção, desconcerto, que agridem de uma forma ou outra nosso senso e rapidamente desaparecem, antes mesmo de machucar. E a violência, esta nunca ocorre de fato, até o momento final. Como um lento Sam Peckinpah, diretor que criou a linguagem da tensão e do nervosismo no cinema, antecipando em quase duas décadas a tal da síndrome do pânico.
O filme trata basicamente de territorialismo, dos limites, e como as pessoas brasileiras lidam com ele. Há o espaço / limite do quarto, do apartamento, do prédio, da rua. Há o limite aéreo, do som, e o limite da imagem privativa, aos quais temos ou teríamos direito. Há o limite da privacidade do telefone celular, há o limite do horário e como se invadem todos esses limites. E há finalmente o seu limite, pessoal, como espectador. O som ao redor, que preenche insistente o silêncio da película, oprime e espreme teu silêncio interior, obrigando-o a se encolher um pouco mais adentro de si mesmo, às vezes num volume tal que te obriga a resistir contra sua invasão. Nossos limites são definidos por aqueles e “aquilos” que se nos impõem. Há até o limite imposto pelos tubarões aos banhistas nas praias da cidade... Dizem que o limite da sua liberdade vai até onde começa o limite da liberdade do outro. Mas o que dizer de um país onde o limite do outro é relativo, negociável, dubitável, confrontável?
Há na história ainda o limite do amor, do relacionamento entre duas pessoas, vivido pelos personagens líderes, e como esse casal se diferencia de todo o resto por respeitar esses limites. Um casal que se ama, abre e funde seus limites pessoais, mas respeita outros, negociados na relação. No filme, as únicas vítimas e heróis são aqueles que respeitam os limites dos outros.
O Som segue nessa construção, cada vez mais tensa, até que no final, encontra a origem dessa forma brasileira de lidar com os limites territoriais, e conecta tudo. Imperdível. Nem que seja só para compreender aquele tipo que para o carro na rua com o alto-falante tocando funk no volume máximo, só para estragar a cena bucólica de nós conversando tranquilos sobre um filme bom que pintou por aí. Uma bela aula de cinema."